terça-feira, 23 de outubro de 2007

tempo seco


esta noite é turvo o sereno
mas o corpo inteiro acalenta
o desfiar do terço em rezas

a alma - cera derretida - dança
em plena liturgia do medo
o feitiço de todas as sombras

esta noite é longa a espera

o tempo achovalhado fere
o duro e seco chão humano
sangra esse silêncio úmido
e o meu noturno desencanto

esta noite é inútil a angústia

sábado, 20 de outubro de 2007

Cassiano Nunes


Meu irmão,
por onde ande
não cale sua voz
"como os gritos
roucos dos navios"
a nos banhar de acalantos
a própria vida.

trem da morte

apito de trem
roendo a alma
( ou o que dela

sobrou)

verme vermelho

ferrugem
no aro do tempo

tem ainda

a espreita da ronda
e o umbral da morte


sexta-feira, 19 de outubro de 2007

pacto

sinto os leves vestígios
da tua alma: nenhuma confissão
é necessária

( os corpos em desencontros
guardam a dor para depois )


no teu colo apenas o suor
de quem parte ao encontro
das bocas: não mais o sal
não mais a angústia
não mais ...


e você
guerreira urbana
qual uma serpente
me seduz

UNE-VERSOS

Foi assim, primeira vez, todos ansiosos.
O receio era evidente, mostrar aos outros, mostrar-se, desvendar-se.
Foi o começo, os versos primeiros. Não aqueles do coração, dos ardentes e sôfregos ais de amor. Mas, os primeiros dos outros, daqueles que leram e disseram sim!
Comparações, as inevitáveis comparações. Três coisas distintas,
três partes diferentes do ser. Mas, ali todos perseguiam a tal chamada unidade. Os une-versos. Exigência óbvia dos tempos!
Une-versos reuniu outras coisas mais importantes que versos.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

meu tempo

essa ampulheta
sobre a mesa da vida
mede o sussurro dos lábios
e a foice do tempo

essa mesma areia
que prende afunda
e queima
mais soterra o que
dela retiro
a toda ferrugem da morte

essa areia
nos vértices da alma
entre vultos de arcanjos
corrói o corpo
e promete a ardência do fogo

"A poesia não se propõe consolar o homem da morte, mas fazer com que ele vislumbre que a vida e a morte são inseparáveis: são a totalidade. Recuperar a vida concreta significa reunir a parelha vida-morte, reconquistar um no outro, o tu no eu, e assim descobrir a figura do mundo na dispersão de seus fragmentos."
Octávio Paz

(do diário de Lívia )

serei teu marinheiro
porto ou vagante

quando em noites marítimas
vagares pelos cais dos mundos


e qualquer dia
sairei pela escuridão das docas

me encostarei nos bares
e beberei teus olhos úmidos de sal


(enquanto teu corpo
aberto a todos os homens
naufraga nas costas do Atlântico)



segunda-feira, 15 de outubro de 2007

meu cão

dentro de mim
um chão de esguelha
me vigia

dentro de mim
um cão
se dabate
e late e fere

feito mim
um vigia do não

(e a culpa que meu coração
não mais abriga)


Rescaldo

já somos passado

não há o que limpar
no assoalho das antigas barricadas
- quem sujou as mãos
que procure um chão mais sólido
nada de falsas moções
meias orações

sendo tarde
há ferrugens nas armas
desalento nas trincheiras
(agora nada de sofrer à-toa)

há só que guardar
em definitivo
esse velho vestido desbotado


infância

no centro dos meus olhos
o mundo girava

nesta época
as mangueiras davam flores
Tânia Mara passava
carregando seus cadernos
como se carregasse
os segredos dos homens

bem na frente de casa

o mundo girava
girava a escola
o pão mofado na merendeira
o rio preso no mapa

bem no meio da tarde

nesta época
morrer era um mistério
meu avô erguia a bengala
apontava para o horizonte
e dizia que lá
- depois do fim -
nascia livre e límpida
uma cordilheira